RTN, 26/09/2025
Por Cristina Maas
O avanço da identidade digital no Reino Unido não trata apenas de simplificar burocracias. Trata-se de estruturar o poder estatal no cotidiano da vida das pessoas.
O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, assumiu o cargo prometendo competência e calma após anos de alegado caos político.
O que se seguiu foi um governo que trata as liberdades civis como descartáveis.
Sob sua liderança, a polícia tem se apoiado em amplos poderes de ordem pública para deter pessoas por causa de tuítes considerados “ofensivos”.
Críticos argumentam que o que é considerado “ofensivo” muda conforme o clima político, o que significa que cidadãos comuns acabam tentando adivinhar o que poderia lhes render uma batida policial em casa.
Isso ocorre ao mesmo tempo em que câmeras de reconhecimento facial em massa estão sendo instaladas em espaços públicos.
O padrão é claro: expandir a vigilância, restringir a dissidência e, depois, assegurar ao público que tudo é em nome da segurança e da ordem.
Nesse cenário, um sistema de identidade digital parece menos uma modernização e mais a peça que faltava em uma rede de controle em expansão.
Uma vez que cada adulto for obrigado a se conectar a uma carteira de identidade centralizada para trabalhar, alugar ou acessar serviços, a capacidade do Estado de monitorar e punir se tornará sem precedentes.
O governo trabalhista de Starmer está desenterrando uma de suas obsessões mais antigas: o sonho de etiquetar cada cidadão como um pacote no correio.
A mais recente tentativa vem na forma de uma proposta para criar carteiras de identidade digital obrigatórias, já apelidadas de “Brit Card”, para todos os adultos trabalhadores do país.
A proposta é apresentada com um discurso nobre: combater o trabalho ilegal, reduzir fraudes, fechar brechas. O efeito real, porém, seria transformar a vida cotidiana em uma checagem permanente de identidade.
As autoridades querem que candidaturas a empregos, contratos de aluguel e outras transações básicas passem por um banco de dados do governo, acessado por meio de um aplicativo.
A promessa é que isso finalmente acabará com a economia paralela de empregadores irregulares. Se a lógica soa familiar, é porque foi o mesmo argumento usado pelo Partido Trabalhista em seu último projeto de carteiras de identidade nos anos 2000, uma iniciativa que foi parar no lixo político em 2010, quando os eleitores perceberam o que estava acontecendo.
“O ID digital é uma enorme oportunidade para o Reino Unido. Vai dificultar o trabalho ilegal neste país, tornando nossas fronteiras mais seguras”, disse Starmer em seu anúncio. “E também oferecerá aos cidadãos comuns inúmeros benefícios, como provar sua identidade para acessar serviços essenciais rapidamente – em vez de procurar uma conta de luz antiga.”
Ativistas e organizações de direitos digitais não estão convencidos.
Gracie Bradley, da Liberty, foi direta: a nova versão “provavelmente será ainda mais intrusiva, insegura e discriminatória” do que a que o país já rejeitou há uma década.
Isso não é um bom presságio para um governo que tenta convencer os cidadãos de que desta vez será diferente.
Rebecca Vincent, da Big Brother Watch, explicou onde isso pode levar: “Enquanto Downing Street se apressa para parecer que está fazendo algo sobre imigração ilegal, estamos sonâmbulos caminhando para um pesadelo distópico, em que toda a população será forçada a passar por inúmeros checkpoints digitais para viver sua vida cotidiana.”
O alerta dela não exige muita imaginação. O Reino Unido tem um histórico duvidoso na proteção de dados sensíveis.
Uma pesquisa encomendada pela Big Brother Watch revelou que quase dois terços da população já acreditam que o governo não pode ser confiável para proteger seus dados. E isso antes mesmo de qualquer sistema de identidade centralizado ser implementado.
Defensores da privacidade veem nisso uma receita para o desastre, argumentando que hackers e funcionários curiosos tratariam o sistema como um banquete de informações pessoais.
O ex-ministro David Davis, um dos críticos mais persistentes desses esquemas, descreveu os riscos como existenciais. “Os sistemas envolvidos são profundamente perigosos para a privacidade e as liberdades fundamentais do povo britânico”, afirmou, observando que o governo não explicou como – ou se – compensaria os cidadãos após uma inevitável violação.
Silkie Carlo, diretora da Big Brother Watch, fez uma previsão direta sobre onde o “Brit Card” pode levar.
Ela alertou que isso pode se expandir por todos os serviços públicos, “criando uma infraestrutura de vigilância em massa doméstica que provavelmente se estenderá da cidadania aos benefícios, impostos, saúde, possivelmente até aos dados da internet e mais.”
Em outras palavras, uma vez que os canais forem abertos, a água não para nos cheques de emprego.
O Partido Trabalhista, é claro, já esteve nessa situação antes. A última vez que lançou carteiras de identidade, em 2009, o experimento mal sobreviveu um ano antes de ser descartado pela coalizão liderada pelos conservadores como uma “erosão das liberdades civis.”
Agora, o partido se apoia fortemente em pesquisas que alegam que até 80% do público apoia credenciais digitais de direito ao trabalho.
O próprio Starmer adotou recentemente esse discurso. No início deste mês, afirmou que as identidades digitais podem “ter um papel importante” no combate ao trabalho no mercado negro.
Ele voltou a defender a proposta no Global Progress Action Summit, em Londres, observando que “todos nós carregamos muito mais identificação digital agora do que há 20 anos.”
O que complica essa venda é o histórico do próprio Partido Trabalhista. Tanto Keir Starmer quanto a atual secretária de Relações Exteriores, Yvette Cooper, já haviam levantado preocupações sobre sistemas de identidade e seu potencial de abuso pelo governo.
Esse ceticismo passado, no entanto, não impediu a nova secretária do Interior, Shabana Mahmood, de se tornar uma das maiores defensoras do plano. Ela declarou recentemente que o sistema é “essencial” para a aplicação das leis de migração e trabalho.
Think tanks alinhados ao Partido Trabalhista também estão dando suporte. O grupo Labour Together lançou um relatório descrevendo a identidade digital como uma “nova peça da infraestrutura cívica”, com potencial para se tornar parte rotineira da vida.
Tony Blair ressurgiu como um dos principais arquitetos desse futuro digital distópico para o Reino Unido.
Através de seu think tank, o Tony Blair Institute for Global Change, o ex-primeiro-ministro promove o sistema nacional de identidade digital, apresentando-o como a espinha dorsal de um Estado tecnologicamente habilitado.
Com Keir Starmer agora no poder, a visão de Blair não é mais um documento de política abstrata. Está se aproximando da realidade com um novo anfitrião.
Para Blair, a identidade digital não é sobre conveniência. É sobre reescrever como o governo funciona e pode ser, no que ele chama, uma “arma contra o populismo.”
Ele já argumentou que um Estado mais enxuto, barato e automatizado é possível se os cidadãos estiverem dispostos a abrir mão de parte de sua privacidade. “Minha visão é que as pessoas estão realmente preparadas para ceder bastante”, disse uma vez, sugerindo que a resistência se dissolverá quando serviços mais rápidos forem oferecidos como isca ao público.
Este projeto não se limita a simplificar a burocracia. A sua versão de eficiência é um Estado sem fricções que também monitora, verifica e restringe de formas que seriam inconcebíveis antes da era digital.
Com o governo Starmer agora desenvolvendo uma carteira de identidade digital e considerando uma implementação nacional, a agenda de Blair está mais próxima da política oficial do que nunca. Vendido como modernização, o plano aponta para uma reestruturação permanente da relação entre cidadão e Estado, bloqueando a identidade pessoal em um sistema centralizado que governos futuros poderão expandir à vontade.
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Fonte:https://reclaimthenet.org/digital-id-uk-starmers-expanding-surveillance-state


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