ZMSCE, 05/03/2025
Por Tudor Tarita
O aprendizado de máquina está remodelando nossa compreensão da história, uma palavra perdida de cada vez.
Durante séculos, o estudo da escrita cuneiforme — o sistema de escrita mais antigo conhecido no mundo — dependia de transcrições manuais minuciosas, com estudiosos dedicando anos para decifrar tablets individuais. Era necessário muito trabalho e grande especialização para traduzir cuneiforme. Agora, a inteligência artificial está tornando esse processo muito mais simples.
Um sistema impulsionado por IA, o ProtoSnap, desenvolvido por pesquisadores das universidades Cornell e Tel Aviv, pode reconhecer e reconstruir caracteres cuneiformes com notável precisão, até levando em conta variações nos estilos de escrita entre diferentes regiões e períodos de tempo.
Esse avanço já está ampliando o número de textos decifrados, lançando nova luz sobre a história econômica e social da antiga Mesopotâmia. Mas isso é apenas o começo.
Do Barro ao Código
Ao contrário dos alfabetos modernos, que dependem de um número limitado de caracteres, o cuneiforme possui mais de mil sinais que evoluíram ao longo de diferentes regiões e períodos. É um pesadelo arqueológico. A mesma palavra, escrita com séculos de diferença, pode aparecer drasticamente diferente, tornando-se um imenso desafio até para os especialistas humanos.
“Mesmo com o mesmo caractere, a aparência muda ao longo do tempo, então é um problema muito desafiador ser capaz de decifrar automaticamente o que o caractere realmente significa”, diz Hadar Averbuch-Elor, cientista da computação da Cornell Tech.
Para resolver isso, os pesquisadores recorreram a um modelo de difusão, um tipo de IA generativa que alinha uma imagem de um caractere cuneiforme com um protótipo conhecido, encaixando-o como uma peça de quebra-cabeça. O resultado: um sistema que pode copiar, reproduzir e reconhecer inscrições cuneiformes mais rápida e precisamente do que nunca.
De uma estimativa de meio milhão de tablets cuneiformes em museus, apenas uma fração foi totalmente traduzida. Ao automatizar grande parte do processo de transcrição, o ProtoSnap poderia expandir vastamente o corpo de textos antigos disponíveis, proporcionando novas informações sobre a lei, economia e vida cotidiana da Mesopotâmia.
“A base da nossa pesquisa é aumentar as fontes antigas disponíveis para nós em dez vezes”, diz Yoram Cohen, arqueólogo da Universidade de Tel Aviv. “Isso nos permitirá, pela primeira vez, a manipulação de grandes dados, levando a novos insights mensuráveis sobre as sociedades antigas — sua religião, economia, vida social e jurídica.”
Uma Nova Era de Decifração
O ProtoSnap é apenas o mais recente de uma lista crescente de avanços em IA que estão remodelando a maneira como os historiadores leem o passado. Em 2023, uma equipe de cientistas da computação e papirologistas conseguiu o que antes parecia impossível: extrair texto grego legível de um pergaminho de papiro que estava enterrado sob cinzas vulcânicas há quase 2.000 anos.
Esses pergaminhos, descobertos nas ruínas da cidade romana de Herculano, permaneceram um mistério desde sua descoberta no século 18. Frágeis e carbonizados, qualquer tentativa de desenrolá-los fisicamente resultava na destruição dos mesmos. Mas a IA forneceu uma maneira alternativa.
Usando técnicas de aprendizado de máquina, a equipe do Desafio Vesuvius treinou um algoritmo para reconhecer os traços mais tênues da tinta à base de carbono escondida nas camadas do papiro. O resultado é uma faixa de texto grego, brilhando contra o fundo digital, revelando passagens inteiras que estavam invisíveis por milênios.
“Foi incrível”, recorda Federica Nicolardi, papirologa da Universidade de Nápoles. “Eu pensei, ‘Então, isso realmente está acontecendo.’”
Uma Nova Janela para o Passado Antigo
O mesmo padrão está se repetindo em várias civilizações e idiomas. Modelos de IA já restauraram inscrições gregas danificadas, traduziram antigas tabuas acadianas e até previram as origens e datas de textos anteriormente sem datação.
O modelo Ithaca da Universidade de Oxford, por exemplo, já ajudou historiadores a resolver debates de longa data nos estudos clássicos. Em um caso, pesquisadores usaram a IA para redatarem uma série de decretos atenienses. Com base em evidências históricas, alguns estudiosos haviam sugerido um período posterior para esses textos — cerca de 420 a.C. em vez de 446/445 a.C. Quando testado, Ithaca confirmou independentemente a data de 421 a.C., dando peso à narrativa histórica revisada.
“Embora possa parecer uma diferença pequena, essa mudança de data tem implicações significativas para nossa compreensão da história política da Atenas Clássica”, diz Jonathan Prag, Professor de História Antiga na Universidade de Oxford.
Enquanto isso, pesquisadores coreanos estão usando IA para processar enormes arquivos de Hanja, o antigo sistema de escrita utilizado na Coreia e na China. Esses arquivos, que documentam os reinados de 27 reis coreanos ao longo de cinco séculos, contêm uma quantidade esmagadora de informações. A IA agora está tornando possível detectar padrões de governança, economia e diplomacia que, de outra forma, poderiam ter passado despercebidos.
A enxurrada de textos recém-acessíveis não está sem desafios. Redes neurais podem, às vezes, gerar traduções enganosas, e alucinações de máquina — onde a IA preenche lacunas com conteúdo plausível, mas incorreto — ainda são um risco. Especialistas enfatizam que a IA deve complementar, e não substituir, os estudiosos humanos, sendo os humanos os responsáveis pela última palavra.
Apesar desses obstáculos, a decifração impulsionada por IA está abrindo portas que antes eram consideradas permanentemente fechadas. Com as ferramentas certas, os historiadores podem um dia reconstruir bibliotecas perdidas, decifrar idiomas que ficaram em silêncio por milênios e fazer novas perguntas sobre civilizações há muito desaparecidas.
“Acreditamos que o aprendizado de máquina pode apoiar os historiadores a expandir e aprofundar nossa compreensão da história antiga, assim como os microscópios e telescópios expandiram o reino da ciência”, diz Yannis Assael, cientista de pesquisa da DeepMind.
O mundo antigo ainda está falando. Agora estamos aprendendo a ouvir.
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