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9 de abr. de 2016

Bálcãs - as aldeias da Xaria: o problema do Estado Islâmico na Bósnia

À entrada da aldeia bósnia de Gornja Maoca havia em fevereiro de 2015 um mural com os símbolos do EI. Várias pessoas foram lá detidas



DN, 10 de abril de 2016.



Por Walter Mayr.



Os islamitas radicais encontraram um novo refúgio na Bósnia. Recrutam combatentes, promovem a jihad e pregam a interpretação fundamentalista do islão, logo ali, bem perto da fronteira com a UE, como conta a reportagem da 'Der Spiegel' que o DN hoje publica

Não resta quase nada de Ibro. Há apenas uma única fotografia de infância, uma imagem de um rapazinho louro de 5 anos que o pai de Ibro digitalizou para a poder trazer sempre consigo no seu telemóvel. Mas não há qualquer fotografia recente disponível. Antes de Ibro deixar a Bósnia para se juntar ao Estado Islâmico (EI) em 2014, rasgou todas as imagens de si próprio que conseguiu encontrar. A sua interpretação da sharia incluía a crença de que as imagens de pessoas eram haram - proibidas.


O pai de Ibro, Sefik, um trabalhador ocasional de 58 anos, visita regularmente os amigos para poder carregar o seu telefone. Sefik vive num casebre que ele próprio construiu nos limites da aldeia de Donja Slapnica. A sua casa tem um fogão a lenha e uma retrete no exterior, mas não tem eletricidade. Quando fica frio, ele veste o casaco e usa um gorro dentro de casa.

As emoções que estão dentro de Sefik desde o dia em que Ibro desapareceu não são imediatamente percetíveis. "Quando morreres, eu não rezarei por ti, porque tu és um infiel." Foram estas as últimas palavras que Sefik, um homem magro de bigode, ouviu de Ibro. Do seu próprio filho.

Ibro Cufurovic, nascido em 1995, é um dos 200 ou 300 islamitas radicais que deixaram a Bósnia e Herzegovina para se juntarem ao EI ou à Al-Qaeda na Síria ou no Iraque. Dois dos terroristas mais procurados do mundo estão entre eles: Bajro Ikanovic, durante muitos anos o comandante do maior campo de treinos do EI no Norte da Síria; e Nusret Imamovic, um dos líderes da Frente Nusra na Síria, um grupo ligado à Al-Qaeda. A Bósnia, afirma John Schindler, especialista americano nos Balcãs e antigo funcionário da NSA, "é considerada como uma espécie de "refúgio" pelos radicais", e abriga agora uma infraestrutura terrorista estável. Não é uma estrutura estritamente hierarquizada e, por isso, no seio do EI considera-se que não transmite a mensagem adequada, ainda assim representa uma ameaça existencial para a fragmentada república.

Segundo as conclusões do Ministério da Segurança da Bósnia, não só foram utilizadas munições provenientes da Bósnia no atentado de janeiro de 2015 à revista satírica Charlie Hebdo como também algumas das armas utilizadas no atentado do Estado Islâmico em Paris a 13 de novembro eram oriundas da ex-Jugoslávia.


É cada vez mais aparente que se estabeleceu um novo refúgio para combatentes, planeadores e recrutadores do EI no meio da Europa. Em algumas aldeias remotas está içada a bandeira do EI e, proporcionalmente à população, houve mais combatentes da Bósnia e Herzegovina que se juntaram ao EI do que de qualquer outro país da Europa, à exceção da Bélgica. Cerca de 30 bósnios perderam a vida nos campos de batalha do Médio Oriente e à volta de 50 regressaram a casa.

Fortes suspeitas

Eles são de especial interesse para os investigadores do terrorismo. Aqueles que combateram na frente e que são subitamente autorizados a regressar a casa estão sob fortes suspeitas de terem recebido ordens para levar a cabo uma missão mortal. Na verdade, não há muitas mais razões para voltar para casa. A Bósnia e Herzegovina respondeu, apertando a sua legislação penal e fazendo que os mercenários que regressam do Médio Oriente e os seus apoiantes enfrentem agora até dez anos de prisão.

Em novembro, pouco antes dos atentados em Paris, um islamita matou a tiro dois soldados num subúrbio de Sarajevo. No início de dezembro, 37 bósnios muçulmanos de alto nível, numa rara demonstração de unidade, exigiram a resistência pública ao terror: "Condenamos todas as incitações ao ódio e à violência", dizia o apelo, assinado pelo muçulmano mais importante do país, o grande mufti Husein Kavazovic.

Apenas dois meses depois, o clérigo moderado tornou-se, ele próprio, um alvo. Num vídeo, um combatente bósnio do EI ameaçou "cortar o pescoço" de Kavazovic. Desde então, o grande mufti tem estado sob proteção policial.

Sem especificar a Bósnia, a agência de polícia europeia Europol emitiu um relatório no início do ano sobre campos de treino do EI que foram criados na periferia da UE e "nos países dos Balcãs". O relatório observa que os recrutas do EI são "treinados em técnicas de matar específicas, que incluem a decapitação".

Os investigadores alemães acreditam que há cerca de uma dúzia de lugares na Bósnia, onde salafitas - seguidores de uma interpretação sunita fundamentalista do Islão - reuniram radicais sem serem incomodados pelas autoridades. No entanto, os relatórios sobre remotas aldeias da sharia são negados pelo Ministério da Segurança e pela polícia especial SIPA. Mas o Ministério Público de Sarajevo, responsável pelas investigações de terrorismo, admite que há lugares na parte norte do país onde vivem cerca de 40 famílias islamitas de acordo com a lei da sharia e onde foram descobertos símbolos do EI.

Um ponto crucial para jihadistas

Pensa-se que um dos lugares suspeitos é no extremo noroeste da Bósnia: numa aldeia chamada Bosanska Bojná. Sefik, o pai de Ibro, o combatente na Síria, conhece bem a área. A procura de pistas sobre o seu filho perdido leva-nos de carro pela região circundante da aldeia de Velika Kladuša, uma área de colinas, onde antigos lugares de culto com os seus minaretes delicados parecem quase desaparecer na sombra das novas mesquitas pretensiosas. A área em torno de Velika Kladuša, localizada do outro lado da fronteira com a Croácia, um Estado membro da UE, é considerada um ponto crucial para os jihadistas, em especial devido às suas dificuldades económicas. Mesmo agora, 20 anos depois do fim da guerra, a taxa de desemprego entre os jovens bósnios é de 60%.

Estamos a lidar com "um Estado fraco e altamente disfuncional", diz o cientista político Vlado Azinovic, coautor do estudo "The Lure of the Syrian War" [A Atração da Guerra da Síria], que se centra na Bósnia e Herzegovina. Velika Kladuša - a menos de 100 km das praias da Croácia - corre o risco de se tornar uma ponte para os terroristas islamitas que se dirigem para o Norte, em particular com a ajuda de trabalhadores convidados radicalizados na Áustria, Alemanha e Itália.

Já no início das guerras jugoslavas nos anos 1990 existia uma comunidade salafita nos arredores de Velika Kladuša, comunidade essa que foi financiada com dinheiro da Arábia Saudita e do Sudão. "O Ocidente deve esquecer os perigos do Oriente, o verdadeiro perigo vem da cor verde do islão", disse o líder radical regional na altura, quando milhares de mujahedin de países árabes e norte-africanos se tinham já juntado aos muçulmanos bósnios na sua luta contra os sérvios e, mais tarde, contra os croatas.

Foi esse aspeto que levou o falecido diplomata norte-americano Richard Holbrooke a referir-se a um "pacto com o diabo" ao falar sobre o pacto formado por necessidade militar. Os combatentes estrangeiros, afinal, não traziam apenas armas para o combate. Eles também trouxeram uma interpretação do islão que era estranha aos ardentes bósnios: a rigorosa abordagem da Arábia Saudita conhecida como wahabismo.

Uma boa rede de ligações

Os ultradevotos, com as suas longas barbas e mulheres de véu, são uma minoria entre os 3,8 milhões de habitantes da Bósnia, dos quais quase metade se identifica como muçulmanos. Mas eles existem, e os mais zelosos estão a tornar-se cada vez mais evidentes - na aldeia de Sefik também. Uma das quatro mulheres do pregador do ódio Husein Bilal Bosnic é de uma das casas nos limites da aldeia.

O Ministério Público acredita que Bosnic é a figura central dos radicais da Bósnia, e que ele tem ótimas ligações no exterior. Em novembro foi condenado a sete anos de prisão por recrutar voluntários para o EI e por incitar ao terrorismo. Sefik foi uma das testemunhas no julgamento. Ele culpa o pregador pelo desaparecimento do seu filho: "Ibro conheceu Bosnic e foi morar com ele pouco tempo depois. No verão de 2014, ele recebeu treino militar e, em seguida, foi para a Síria. De certa maneira, ele foi vendido."

A casa da qual Ibro partiu para a Síria é ainda o lar das quatro mulheres do pregador e dos seus 18 filhos. O altifalante no telhado podia ser ouvido por quase todo o vale nas horas de oração e as suas mulheres, se se deixassem ver no pátio, vestiam a abaya preta até ao chão e usavam um véu que só tinha umas fendas para os olhos. Bosnic, que foi em tempos um soldado da 7.ª Brigada Mujahedin, tornou-se um pregador itinerante após o fim da guerra. Apareceu na mesquita Al-Baraka em Pforzheim, na Alemanha, bem como em casas de oração em Itália e na Suíça. Há vídeos dele a cantar: "Com explosivos nos nossos peitos abrimos o caminho para o paraíso."

Os bósnios não são os únicos nos Balcãs a responder a esses chamamentos. Muçulmanos do Kosovo, Macedónia (Fyrom) e Sérvia também estão entre os 22 mil nomes de combatentes do EI revelados no início de março. A pobreza e falta de ordem estatal garantem a abundância de recrutas.

O ex-imã liberal da aldeia onde Ibro Cufurovic cresceu fala da misteriosa arte de "transformar completamente os jovens em apenas alguns dias". Ele diz que o rapaz foi durante muito tempo um aluno--modelo e, depois, assistente na mesquita e muezzin. Os fiéis chegaram a recolher donativos para Ibro e a sua entrada numa universidade islâmica estava a ser considerada. Mas depois as coisas correram de outra maneira.

Ibro começou a insultar o pai e a dizer aos muçulmanos mais velhos da aldeia como deviam orar corretamente. Começou também a sair da mesquita mais cedo, antes das orações finais que são regra na Bósnia, mas que não são normais na Arábia Saudita. Na despedida, disse ao imã da aldeia, um homem que o havia tratado como filho: "Você não sabe nada sobre o islão."

"Eles confiscaram tudo"

Ibro tinha 19 anos na altura, recorda Sefik, seu pai. "Nem sequer tinha uma barba suficientemente espessa para parecer um salafita. Mas pouco tempo depois foi-se embora." O primeiro sinal de vida vindo da Síria chegou via telefone: Ibro exigia que a sua mãe deixasse o marido e fosse para a Síria para encontrar um novo companheiro entre os combatentes do EI - os "irmãos" - de lá.

No caminho para a aldeia fronteiriça de Bosanska Bojná, Sefik para em frente a uma casa pintada de cinzento. É a casa de Rifet, seu companheiro no sofrimento. Juntos, eles fizeram o percurso de oito horas de autocarro durante a noite até Sarajevo para testemunharem no julgamento contra Husein Bosnic. Juntos, eles viram o pregador a negar categoricamente todas as acusações contra ele. O filho de Rifet chamava-se Suad até se ter juntado à guerra na Síria. Agora, ele é celebrado como um mártir em vídeos na internet sob o seu nome de guerra Abu al-Furqan Bosni. Morreu na Síria no início de 2015.

Nesta manhã, o irmão do mártir mostra-se: barba preta, boné de croché preto e uma expressão desconfiada no rosto. Está em liberdade, por enquanto, apesar do facto de ele e os seus companheiros de armas terem sido encontrados na posse de um arsenal, incluindo granadas de mão, minas terrestres, carabinas e pistolas, além de uma bandeira do EI. Estariam eles a preparar um ataque perto da fronteira croata? Ele não está com vontade de falar: "Deixem-me em paz. Eles confiscaram tudo o que tínhamos."

A fronteira externa da UE corre ao longo da periferia de Bosanska Bojná. Uma estrada de gravilha leva à Croácia passando por uma barreira enferrujada na fronteira. Quem pretender fazer contrabando de pessoas, armas e dinheiro para a UE dificilmente conseguiria encontrar um lugar melhor para isso. Se a Croácia viesse em breve a fazer parte do espaço Schengen, esta remota região de fronteira a leste de Krajina representaria um flanco sul amplamente aberto.

O procurador do Ministério Público em Sarajevo acredita que os salafitas compraram oito hectares de terras aos sérvios que aí viviam, usando uma doação de duzentos mil dólares do emirado do Qatar. Como regra, os fundamentalistas da Bósnia compram propriedades onde for barato, remoto e improvável receber visitantes indesejados.

Difícil de penetrar

Desde o final da guerra em 1995, a Bósnia e Herzegovina tem sido um deserto político onde é fácil encontrar esconderijo. Está dividida em duas entidades distintas, juntamente com o distrito de Brcko, uma unidade administrativa autónoma. Há dez cantões. Para alcançar a fortaleza salafita de Gornja Maoca, por exemplo, a Polícia Federal tem de entrar na região autónoma e informar os seus homólogos de lá. "Dá mais que tempo para os radicais recolherem as suas bandeiras do EI", diz um investigador.

Agentes da SIPA, a polícia especial da Bósnia, que varrem as aldeias à procura de quem possa estar a preparar-se para viajar para a Sérvia, são comedidos nas respostas às perguntas: "Há uma série de lugares onde as pessoas vivem que são sítios de interesse do ponto de vista da segurança. Mas eles estão sob vigilância constante dos agentes de segurança."

Igor Golijanin, um homem com a estatura de um jogador de basquete, do Ministério da Segurança em Sarajevo, é um pouco mais cético. Chefe de gabinete do ministro, Golijanin diz que as comunidades islamitas estão a atrair "um número crescente de seguidores" e que as suas redes herméticas são difíceis de penetrar.

"Estamos a falar de aldeias onde as crianças já não vão para as escolas públicas, optando pelo ensino privado, de acordo com um currículo jordano. Estamos a falar de pessoas com tendência para a violência que comunicam entre elas usando códigos secretos em jogos de vídeo. Estamos a falar sobre ocultação: o que costumava ser talvez reconhecível como um campo de treino desaparece hoje sob a capa de uma organização não governamental."

Essas são notáveis admissões de impotência, vindas de um representante de um país que recebeu 90 mil milhões de euros em financiamentos pós-guerra da comunidade internacional, a fim de instaurar a estabilidade.

Fundamentalistas vários

Já há três anos, o International Crisis Group avisara que o islamismo e o nacionalismo estavam a dançar um "tango perigoso" na Bósnia e Herzegovina. E os beneficiários da disputa entre os bósnios, sérvios e croatas sempre foram e continuam a ser os extremistas de todos os tipos.

Mais recentemente, foram contadas 64 comunidades muçulmanas ilegais suspeitas de radicalismo. Desde 1 de março que as forças de segurança têm poderes para tomar medidas contra os renegados. Caso contrário, o caos poderia instalar-se, adverte Bakir Izetbegovic, o membro bósnio da presidência tripartida da Bósnia e Herze-govina.

Para muitos, no entanto, este aviso chega demasiado tarde. Ibro Cufurovic é um deles. Recentemente, uma nova fotografia sua apareceu na internet, mostrando um jovem loiro, com um cabelo ralo e olhos azuis: Ibro. Qualquer pessoa, incluindo o seu próprio pai, Sefik, a pode agora ver - é a fotografia de procurado para a prisão de Ibro Cufurovic e está patente no site da Interpol desde 26 de fevereiro de 2016. As acusações contra o jovem bósnio são as seguintes: "Organizador de um grupo terrorista relacionado com o crime de terrorismo."


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